12/11/2021
Probióticos Como Adjuvantes na Aquisição da Tolerância à APLV

Roberta Esteves Vieira de Castro, MD, MSc, PhD

O que é APLV?

APLV é a sigla para “alergia à proteína do leite de vaca” e pode ser considerada como um termo genérico para diferentes condições clínicas com sintomas, fisiopatologia e tratamento distintos1 iniciados após a introdução de leite de vaca na dieta2. Consiste em uma reação adversa a uma ou mais proteínas do leite de vaca, geralmente caseínas ou β-lactoglobulina do soro de leite, mediada por um ou mais mecanismos imunológicos3.

Em geral, a APLV se manifesta como uma variedade de manifestações clínicas que comumente se desenvolvem em bebês e podem regredir por volta dos 6 anos de idade4. É uma das alergias alimentares mais comuns na infância, com uma prevalência de 2–3% (dependendo da localização geográfica)5 e que vem crescendo globalmente ao longo dos últimos anos6. No Brasil, há poucos dados epidemiológicos. Em um estudo realizado em 2010 e que incluiu 9.478 pacientes avaliados por 30 gastroenterologistas pediátricos nas cinco regiões do país em um período de 40 dias, foi descrita uma prevalência de APLV suspeita em 5,4% da população estudada (513/9,478) sendo que a incidência encontrada foi de 2,2% (211/9,478)3,7.

A APLV é classificada em três tipos: mediada por imunoglobulina E (IgE), não mediada por IgE ou mista (mediada e não mediada por IgE). Na APLV mediada por IgE, ocorre por uma resposta imunomediada exacerbada a uma ou mais proteínas do leite de vaca. A exposição subsequente à (s) proteína (s) induz a reticulação de anticorpos IgE e a liberação de histaminas e outros mediadores imunológicos de mastócitos, que podem dar origem a quadros imediatos de urticária e angioedema. Essas reações mediadas por IgE são caracterizadas por manifestações alérgicas que ocorrem em uma a duas horas após a ingestão do alérgeno. Os sintomas não-IgE se manifestam dentro de horas a dias. Como as manifestações clínicas da APLV não mediada por IgE são uma reminiscência de outras manifestações alérgicas e não alérgicas na infância, diagnósticos tardios e errôneos são comuns. Nesse caso, o diagnóstico é baseado na história clínica, sintomas e exame físico, e confirmado pela remoção e reintrodução de leite de vaca na dieta1,2. A APLV se mantém, mais provavelmente, em doença mediada por IgE e quando existe uma sensibilização intensa, com níveis mais altos de IgE ou reações aos testes cutâneos fortemente positivas, inúmeras sensibilizações alimentares e alergia respiratória simultânea, como rinite e asma6

É importante destacar que a APLV deve ser diferenciada da intolerância ao leite, situação em que um mecanismo não imunológico está envolvido. Exemplos incluem a intolerância à lactose e a aversão ao leite ou intolerância psicológica. A intolerância à lactose não envolve o sistema imunológico, mas a deficiência de uma enzima para digerir a lactose. Assim, o diagnóstico de intolerância à lactose não envolve quaisquer parâmetros imunológicos, enquanto a doença relacionada ao sistema imunológico envolve marcadores imunológicos relevantes1

As manifestações alérgicas de APLV incluem urticária, angioedema, dor abdominal, vômitos, cólica, diarreia, sangue e/ou muco nas fezes, constipação intestinal ou congestão nasal. Algumas crianças apresentam dermatite atópica (DA) que não melhora com o tratamento, sendo que o eczema de início precoce resistente ao tratamento também pode ser uma apresentação de APLV, assim como a anafilaxia2.

A APLV se resolve de forma espontânea na maioria dos pacientes pediátricos. Entretanto, a indução da tolerância oral pode ser uma alternativa terapêutica em casos de alergia persistente, principalmente quando existe risco de ingestão acidental com reações graves subsequentes6. Dessa forma, a APLV pode ser uma imensa fonte de estresse parental e familiar devido a uma dieta com restrição de leite e pode levar a uma deficiência nutricional subsequente se não for tratada adequadamente4.

O que são probióticos e quais seus efeitos no tratamento de alergias?

Probióticos são definidos como microrganismos vivos que, quando administrados em quantidades adequadas, conferem um benefício à saúde do hospedeiro8. Os probióticos modulam a estrutura e função da microbiota intestinal e interagem com os enterócitos através da diminuição da permeabilidade intestinal, aumentando a espessura do muco, estimulando a imunoglobulina A (IgA) secretora e produzindo defensina. Ademais, podem modular a resposta da citocina por células imunes e ajudar na prevenção de alergias9,10

Os probióticos foram implicados com sucesso na prevenção de algumas alergias, incluindo a prevenção da DA. A terapia probiótica também tem demonstrado desfechos positivos no tratamento da rinite e da DA, reduzindo a gravidade dos sintomas. Diferentes cepas de Lactobacillus spp. são conhecidas por desempenhar um papel importante na mediação da resposta imune devido ao aparecimento de estruturas supressoras de DNA específicas envolvidas na estimulação da imunidade10. Por exemplo, um recente estudo multicêntrico, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo que incluiu bebês com até dois anos de idade com DA e APLV concluiu que a administração de uma preparação probiótica contendo uma mistura de cepas de Lactobacillus rhamnosus ŁOCK 0900, Lactobacillus rhamnosus ŁOCK 0908 e Lactobacillus casei ŁOCK 0918 é segura e induz efeitos benéficos, especialmente em pacientes sensibilizados com alérgenos. Nesse estudo, a suplementação da dieta dos bebês com a preparação probiótica por três meses resultou em uma melhora significativa na gravidade dos sintomas de DA avaliada com o uso do índice SCORAD11

Em relação ao tratamento de alergias alimentares, os resultados são contraditórios e dependem do tipo específico de cepa probiótica e da duração do tratamento10

Probióticos no tratamento da APLV

Em 2018, no último Consenso Brasileiro sobre Alergia Alimentar, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) descrevem que há poucas evidências que suportem o uso de probióticos na prevenção ou no tratamento da alergia alimentar. Uma revisão sistemática realizada em 2019 demonstrou que as evidências atuais sobre os efeitos dos probióticos no manejo da APLV são limitadas e de baixa qualidade3,6,12,13

Entretanto, há estudos que apontam que a microbiota intestinal de bebês e crianças com APLV pode apresentar desequilíbrios9. Em crianças com sensibilização alimentar, o aumento da relação Enterobacteriaceae / Bacteroidaceae e uma diminuição da abundância de Ruminococcaceae foram descritos na literatura, sugerindo que a disbiose intestinal precoce contribui para o desenvolvimento subsequente de alergia alimentar. Com base nessa premissa, os probióticos têm ganhado grande atenção nos últimos anos como uma opção preventiva e terapêutica para essa condição, atuando como moduladores imunológicos que estimulam respostas mediadas por linfócitos T-helper 1 (Th1). As bactérias mais comumente usadas como probióticos pertencem às espécies Lactobacillus e Bifidobacterium. O  momento e a duração do tratamento com probióticos, as cepas probióticas ideais e os fatores que podem alterar sua ação na microbiota intestinal ainda não estão esclarecidos. Antes de propor cepas probióticas específicas para uso clínico, seria necessário explorar a capacidade dessas cepas de atingir o lúmen intestinal e modificar a microbiota intestinal do hospedeiro. Esse é um dos motivos pelos quais recomendações unívocas sobre probióticos ainda não foram elaboradas para a alergia alimentar, como a APLV14

Lactobacillus rhamnosus GG no tratamento da APLV em bebês

O pesquisador Roberto Berni Canani e sua equipe de Nápoles e Trieste, na Itália, têm demonstrado, em estudos clínicos, que bebês com APLV alimentados com fórmula contendo caseína extensivamente hidrolisada (FCEH) suplementada com a espécie bacteriana probiótica Lactobacillus rhamnosus GG (LGG), desenvolvem tolerância em taxas mais altas do que aqueles tratados com fórmula não probiótica. Inclusive, em estudo controlado randomizado que foi realizado em uma população bem característica de crianças com APLV mediada por IgE, os pesquisadores mostraram que o uso de FCEH associada a LGG é superior a FCEH isolada para a prevenção de manifestações alérgicas durante um período de 36 meses15.

Em estudos recentes, o LGG demonstrou ter potencial para afetar reações imunológicas e prevenir e tratar a inflamação alérgica. O LGG  coloniza o sistema intestinal e pode ser isolado nas fezes e seu efeito profilático e terapêutico do LGG foi demonstrado em bebês com doenças atópicas, especialmente a DA suscetível à APLV. Atualmente, o LGG tem sido usado em investigações clínicas em bebês prematuros e a termo nas doses entre 108 e 1010 unidades formadoras de colônias [UFC]16.

Referências

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