A doença celíaca (DC) é uma doença de caráter autoimune induzida pela ingestão do glúten, uma proteína alimentar, que gera uma resposta inflamatória em pacientes geneticamente suscetíveis. Essa resposta é caracterizada por uma inflamação no intestino delgado com infiltração celular e consequente atrofia vilositária, resultando nos sintomas de disabsorção. Diversas comorbidades podem estar associadas à DC, como diabetes mellitus tipo I, deficiência de IgA e tireoidites autoimunes, mas um fato que chamou a atenção é a possibilidade da relação entre doença celíaca e o transtorno do espectro autista (TEA). O primeiro relato de caso que trouxe a presença simultânea de doença celíaca e transtorno do espectro autista foi descrito em 1960 em uma coorte de cerca de 65 crianças com diagnóstico de TEA. Desde então tem-se tentado encontrar uma possível relação entre essas duas condições.
Estudos recentes evidenciaram que os pacientes com DC têm uma maior possibilidade de apresentarem transtornos psiquiátricos de forma geral, como ansiedade, depressão e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Nos pacientes com TEA, é observada uma maior prevalência de sintomas do trato gastrointestinal (TGI), como constipação, diarreia e dor abdominal. Por essa linha de pensamento, alguns relatos de caso afirmam que pacientes com TEA tiveram melhora dos sintomas do TGI após a instituição de uma dieta sem glúten.
Qual mecanismo dessa relação entre DC e TEA?
Pesquisas iniciais trouxeram a hipótese da relação entre excesso de opioides e TEA após, em 1979, um pesquisador observar o comportamento de animais em uso dessas medicações e associar a semelhança de comportamento aos das crianças com TEA. A partir de então, surgiu a hipótese de que níveis excessivos de peptídeos opioides endógenos e/ou exógenos podem dificultar a neurotransmissão e o neurodesenvolvimento no sistema nervoso central (SNC), causando desordens que podem se assemelhar ao TEA. Essa hipótese levou à proposta de uma possível associação entre doença celíaca e transtorno do espectro autista, já que os peptídeos opioides podem ser produzidos pela hidrólise de proteínas alimentares, incluindo glúten e caseína.
De forma geral, a barreira hematoencefálica diminui a possibilidade da entrada dos opioides no SNC, porém, por alterações genéticas, essa barreira pode estar mais permeável, favorecendo a maior concentração destes no SNC. Outro ponto a se considerar é o aumento da permeabilidade da mucosa intestinal nos pacientes com DC, fazendo com que os níveis de opioides no sangue sejam mais elevados, consequentemente estando mais disponíveis para atingir o SNC.
Recentemente o Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition (JPGN) lançou uma revisão sistemática sobre a relação entre DC e TEA, avaliando estudos nos bancos de dados Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE) e Excerpta Medica dataBASE (EMBASE), pesquisando por estudos que relataram simultaneamente DC e TEA entre janeiro de 1946 e outubro de 2020. Os resultados obtidos foram os seguintes:
- Um total de 298 trabalhos foram identificados e, desses, apenas 17 atenderam aos critérios de elegibilidade, trazendo simultaneamente a avaliação de DC e TEA.
- DC em pacientes com TEA:
- De treze estudos, nove não relataram nenhum caso de DC em suas respectivas amostras de pacientes com TEA (representada por 572 pacientes);
- Quatro estudos relataram a presença de DC na amostra TEA (representando 21 casos de DC em 735 pacientes com TEA);
- Calderoni et al. relataram uma prevalência de DC de aproximadamente 2,6% (intervalo de confiança de 95% [IC 95%]: 1,0-4,2) em crianças com TEA, sendo essa significativamente maior do que a prevalência na população geograficamente correspondente (P 1⁄4 0,013);
- Badalyan e Schwartz observaram uma prevalência de DC de 4,3% em uma pesquisa que incluiu 211 crianças com síndrome de Asperger ou algum transtorno de comportamento não especificado e 1,3% em 79 crianças com TEA, respectivamente. Esses achados não foram estatisticamente significativos;
- No geral, 21 casos de DC foram identificados em uma amostra de 1.307 pacientes com TEA (1,61%).
- TEA em pacientes com DC:
- Seis estudos (incluindo 2 discutidos anteriormente) investigaram casos de TEA em uma amostra de pacientes com DC;
- Um estudo não relatou nenhum caso de TEA no grupo DC (representado por 120 pacientes);
- Os demais cinco estudos relataram a presença de TEA em amostras de DC (representando 210 casos de TEA em 38.426 pacientes com DC);
- Zelnik et al. encontraram 1 caso de TEA entre uma coorte de 111 pacientes enquanto Mazzone et al. observaram 2 casos em uma amostra de 100 crianças;
- Butwicka et al. e Ludvigsson et al. (identificaram diagnósticos de TEA antes e após o diagnóstico de DC na população sueca. Ambos estes estudos relataram odds ratios não significativos. No entanto, descreveram um aumento do risco de TEA após o diagnóstico de DC com razão de risco de 1,5 (IC 95%: 1,2-1,8) e 1,39 (IC 95%: 1,13-1,71), respectivamente.
Discussão e conclusão
Os estudos presentes não conseguem sustentar a hipótese da relação direta de TEA e DC, sem evidências significativas para tal. A revisão sistemática em questão foi a primeira a tentar encontrar essa relação, no entanto, suas limitações podem ser atribuídas, principalmente, à heterogeneidade substancial entre os estudos em relação ao modelo do estudo, faixa etária, distribuição por sexo, critérios de diagnóstico e fatores geográficos.
É importante levarmos em consideração que o estabelecimento de uma relação entre TEA e DC é um desafio, tanto para o diagnóstico correto do TEA, baseado em sinais e sintomas subjetivos, quanto para o diagnóstico da DC na população pediátrica, que requer testes sorológicos e/ou análises de biópsia associados a presença dos sintomas compatíveis. Sendo assim, mais pesquisas são necessárias para confirmar claramente uma associação entre doença celíaca e transtorno do espectro autista.
Fonte: https://pebmed.com.br/doenca-celiaca-e-transtorno-do-espectro-autista-existe-relacao/
Autor(a): Jôbert Neves
Médico formado pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) ⦁ Residência Médica em Pediatria Geral e Puericultura pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP) ⦁ Formação em Alimentação Complementar Integrativa e Baby-Led Weaning (BLW) – Instituto BeLive ⦁ Especialização em curso – Gastroenterologia Pediátrica pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo (ISCMSP)
Referências Bibliográficas:
Quan J et al. Association Between Celiac Disease and Autism Spectrum Disorder: A Systematic Review. J Pediatr Gastroenterol Nutr. 2021;72(5):704-711. doi: 10.1097/mpg.0000000000003051